segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Canoa de tolda Itabajara: o resgate


Canindé de São Francisco/SE – Uma das maiores canoas de tolda que já existiu no Baixo rio São Francisco ainda pode ser vista apesar do estado físico lamentável que ela se encontra. O trabalho que resgatará a grande canoa chamada de Itabajara exigirá muito sacrifício, empreendimento e dedicação por parte dos que farão parte de tal empreitada. 

Das mais de sessenta naus que navegavam pelo rio só existem hoje três delas: a Piranhas que foi reconstruída na cidade de Propriá através do projeto da prefeitura da cidade de Piranhas/AL; a Luzitânia, que é fruto do pensamento da ONG-Canoa de tolda na cidade de Piaçabuçu e até já recebeu prêmio em Brasília e agora aparece a canoa Itabajara que poderá voltar a navegar pelo rio São Francisco.

A Canoa de tolda Itabajara era de propriedade de Francisco Fernandes, conhecido por Chico de Guilherme, onde ela passou três anos para ser construída pelo mestre Cornélio Rodrigues lá no povoado Jacaré/SE e enfim entrou nas águas  do rio onde fez a sua primeira viagem no Baixo rio São Francisco ainda sem a tolda e, coincidentemente, nessa sua primeira viagem uma grande tempestade fez-se cair por toda a noite, deixando o seu proprietário exposto ao frio e chuva sem um abrigo para ampara-lo. Francisco Fernandes fez a canoa com muita dificuldade financeira e isso o ajudou a ter mais amizade ao seu patrimônio.

Depois de navegar por mais de vinte e cinco anos, levando todo tipo de carga para as cidades do Alto Sertão, a Itabajara foi vendida no mês de fevereiro de 1989 ao senhor José Luiz residente na cidade de Neópolis/SE que de imediato tratou logo de mudar o seu projeto inicial ou configuração de barco rustico, ou seja: ao invés dos belos traquetes – panos – que a impulsionavam com beleza e maestria, ela ganhou um motor enorme com três marchas e um barulho ensurdecedor, perdendo assim um dos aspectos mais bonitos que elas possuíam justamente na maneira silenciosa de como navegavam, pois os únicos sons que se podiam ouvir eram murmurar do vento uivando nos panos e o passar dos traques de um lado para o outro; as belas tábuas de bolina foram arrancadas deixando-a nua e sem adorno externo; o , é que eram percebidos como som;  a tolda de quatro metros que abrigava os passageiros e era a sua definição enquanto canoa, e dai o nome canoa de tolda, foi arrancada deixando-a sem uma referência do projeto original, ficou pelada e sem a tez tão bela; os bancos de proa e poupa foram igualmente arrancados com dureza, deixando cicatrizes vivas até hoje e um dano irreparável que conta muito para a segurança da nau; o seu leme, obra prima do mestre Cornélio Rodrigues, feito a tão gosto, foi substituído por um de ferro tosco, sem cor, frio, sem luz, sem vida e forjado ao fogo e a martelo; os moitões não rugiam mais, o vento não mais a impulsionavam, as bolinas jogadas em terra, as escoltas viraram cordas de amarrar nada, a tão bela tolda desmanchada e suas tábuas usadas sabe-se lá para que. Da grande não só ficou o cavilhame que funcionam como costelas de um ser vertebrado; às tábuas do costado por serem fortes não se renderam; parafusos, tábua de casco, cordão, beral, proa e poupa continuaram fortes e hoje são os responsáveis por deixa-la ainda em pé. A canoa de tolda Itabajara quase foi destruída.

Com vinte metros de cumprimento, doze de verga e mastro, três e quarenta e quatro de largura, profundidade de um metro e quarenta, tolda de cinco metros, poupa de quatro metros e quarenta, a canoa Itabajara não é qualquer uma e para suportar toda essa estrutura foi preciso um trabalho de verdadeiro mestre, boa madeira e um projeto bem calculado. A exigência do proprietário Francisco Fernandes em orientação ao velho mestre Cornélio Rodrigues era para que a canoa fosse feita para carga e durar no tempo de manutenção e reparos. Exigência, capacidade, empenho e dedicação foram os aspectos colocados na construção da canoa e é o que a faz ficar de pé até hoje. 

Lá, na cidade de Neópolis/SE, ela ficou por vinte e dois anos servindo ou contribuindo de alguma forma para àquele povo ribeirinho e suas necessidades. Foi transporte de gente, animais, carga de todos os tipos, transporte de lazer e passeios; foi fotografada, filmada, admirada por poucos e ignorada por muitos até ficar no estado em que estava: jogada em um porto com lama, mato aquático e  paus, esquecida e exposta a própria ação do tempo e a própria sorte. Jogada para morrer da pior maneira que pode acontecer com uma canoa, justamente sem mais navegar. Para um canoeiro é preferível saber que uma canoa está no fundo do rio do que vê-la findar-se em terra sob o sol, a chuva e o vento. A Itabajara estava numa beirada a meia água, a meio sol, agonizando da sua maneira.

Exatos vinte e dois anos depois um dos filhos mais jovem de Francisco Fernandes, Everaldo Fernandes,  readquiriu-a e está tentando, a muito custo, fazer o trabalho de recuperação, resgatando a sua configuração original e colocando-a para navegar novamente nas águas do rio São Francisco. A ambição de Everaldo Fernandes tem explicação: todos os filhos de Francisco Fernandes tinham na canoa de tolda a sua principal fonte de sustentação. Chico era o tipo de homem que trabalhava incansavelmente na sua canoa. Para você ter uma ideia da vida dura de Chico ela pode ser contada da seguinte forma: nos dias de domingo, assim que o vento caia, os grandes panos eram içados e a canoa lançada na água rumo a cidade de Piranhas onde deveriam estar no máximo na terça por motivo da feira naquela cidade que acontecia aos dias de quarta-feiras. Como carga ela levava os mantimentos de arroz, milho, sacos contendo litros de cachaça, outras mercadorias e passageiros. A viagem, se o vento era bom, levavam de um dia a um e meio e se o vento não ajudasse ou fosse nas épocas de invernos poderia levar de dois a semanas. Assim que a feira acabava, já por volta das 14 e 15:00h, a canoa zarpava do porto da cidade sertaneja de Piranhas e vinha dando porto em outras buscando mercadorias para levar até a cidade de Propriá ou para onde se pretendia o destino do contratante. Na vinda ela vinha muito carregada e era muito comum aos que não tinham costume de viajar nas canos achar que ela iria capotar devido ao tipo de rumo chamado de bordo que ela tomava. Era comum encontrar a canos Itabajara em bordos intermináveis noite a dentro sempre indo de um lado a outro, ora em Sergipe e ora em Alagoas, indo e voltando até que o dia amanhecia onde podia-se ver uma pequena fumaça vinda de um pequeno fogão a assar um naco de carne ou a ferver um bule de café e sempre um velho canoeiro a zingrar ou a segurar a cana de leme com a tez mirando rumo a baixo. Ela trazia do Sertão o carvão, cal, estacas de madeira, pedras da cidade de Belo Monte, pequenos animais tipo galinha, ovelhas, cabras, pássaros do tipo papagaios, araras, gaiolas e outras espécies quando abundantes e não era proibida o comércio, latas de mel, passageiros e outras mercadorias. Chegava a cidade Propriá em um bordo lento, cansada, mirando o belo porto da cidade que as vezes já estava lotado delas por volta das 16:00hs e até mesmo no cair da noite. Chico de Guilherme fez essa jornada por mais de trinta anos pois sua primeira canoa foi a Paraguaçu para depois construir a Itabajara.

 É certo que a recuperação da canoa Itabajara não será fácil devido a sua robustez e outras características peculiares a ela. Everaldo certamente, se quiser manter a sua configuração ou projeto de construção original da grande nau, haverá de ter subsídios financeiros, muita paciência, fé, determinação e ânimo. Não será fácil.

Talvez agora algumas autoridades desejem olhar o resgate da canoa de tolda Itabajara como uma oportunidade de tentar fazer algo pelo passado, história, cultura e humano do baixo São Francisco e numa parceria propor a Everaldo Fernandes, através de projeto, ajuda-lo a reconstruir a bela nau que pode servir de elo entre o passado e presente inserindo a sua história na grade de estudos do município, ou fazendo um museu fluvial navegante no baixo São Francisco. O interessante é que a atenção seja dada pois sabemos da grande contribuição que essas canoas deram para a formação do desenvolvimento das regiões de todo o Baixo São Francisco desde a cidade Piranhas, passando por Porto de Folha, Gararu, Itraipu, Pão de Açúcar, Poço Redondo, Penedo, Neópolis, Porto Real do Colégio e Propriá. Elas foram, em um tempo remoto, o único transporte de carga, passageiros e correspondência entre essas cidades e povos. Uma grande contribuição e a sociologia e antropologia, história e cultura registram isso com habilidade. 

Na bandeira da cidade de Propriá contem a imagem de uma canoa de tolda e para os de hoje a gravura é apenas um barquinho com dois panos e uma casinha como bem disse minha sobrinha de dez anos que só agora começa a saber o que elas foram e o que representaram para num passado não tão distante. Um barquinho?! 

A configuração da Itabajara era algo monstruoso pois ela foi uma das maiores do rio e certamente refaze-la não será fácil. Contudo, a noticia da que Everaldo Fernandes readquiriu a canoa Itabajara de volta, chegou aos ouvidos de dois grandes velhos mestres de carpintaria naval ainda vivos: um deles é o próprio que a fez, Cornélio Rodrigues, que ainda encontra-se lucido e gozando de boa saúde e o outro é Pedro Amorim, também grande mestre da cidade de Propriá onde o encontro se dará, provavelmente, no mês de janeiro/2012 e assim ver a bela nau que, mesmo no estado precário em que se encontra, avariada e necessitando de reparos, ainda continua bela de ser vista e esse sentimento só tem àqueles que sabem da sua importância para o desenvolvimento da região, os que simplesmente lhe acham bela como barco rustico só encontrado no Baixo São Francisco, os que tiveram o prazer de navegar em qualquer uma delas, pois todas foram lindas demais como verdadeiras obras de arte; os que viajaram e dormiram em seu camarote dentro da tolda, nos estrados, por sob o tordão ou na poupa da canoa a sentir o frescor do rio, a brisa da manhã que fazia o sono ficar bem mais gostoso, àqueles que almoçaram da inesquecível feijoada tão apreciada das canoas de tolda; do pegar de pareia rio acima chacotando uns com outros, dos que fizeram delas a própria existência e choraram quando se desfez delas. Esses e mais outros são os que tem o sentimento mais nobre pelas canos de tolda e que ainda lutam por divulgar alguma coisa delas mesmo que sem ser dado o valor merecido, entretanto, levando uma mensagem de esperança aos homens que dirigem essa nossa pátria amada.

A canoa de tolda Itabajara poderia estar embaixo das águas do nosso rio São Francisco assim como a canoa Topázio que naufragou, por excesso de peso, acima do buraco de Maria Pereira no morro da Tabanga quase de fronte a cidade de Traipu e que Everaldo Fernandes ainda trabalho por muitos dias dedicando-se a tentar retirá-la de fundo do rio e quase conseguiu se fosse ajudado. Ainda bem que ela pode ser reconstruída, poderá voltar a navegar e voltar a ser admirada, objeto de beleza e admiração por todas as pessoas. Seu valor histórico e cultural pode também ser observado e as devidas homenagens devem ser feitas sob a ótica da contribuição que elas deram ao nosso povo.

Desse ponto em diante teremos a chance de estudar a maneira de como elas eram construídas, que matemática era aplicada para se achar o tamanho exato de um pano de traquete; das bulinas, leme, largura, cumprimento e suporte de peso – tara -, informações perdidas que ainda podem ser recuperadas a tempo antes que seja tarde demais e os atores interessados não estejam mais presentes nesta cena atual e iguais às canoas de tolda que passaram sem registro histórico e valor merecido a elas/eles.

Agradecimentos:

Parabéns Everaldo Fernandes por sua luta e dedicação no resgate da Itabajara, ao escritor Etevaldo Amorim que publicou um livro a respeito do assunto e sobre o mestre Minervino Amorim – pai de Pedro Amorim -, aos mestres Cornélio Rodrigues pela grande contribuição, a Pedro Amorim pela sua humildade de mestre e ser humano, Inácio Loiola pela reconstrução da canoa de tolda Piranhas, a ONG Canoa de Tolda pelo resgate da Luzitânia, a Alcino Alves Costa que está escrevendo o livro Canoas: O Caminho Pelas Águas, a Djalma Santos que está contribuindo com achados e informação sobre às canoas de tolda, ao jornalista Luiz Eduardo Costa que demonstrou interesse em conhecer alguns personagens ainda vivos e quem sabe poder contribuir de alguma maneira e por fim a todos que, de forma direta ou indireta, estão ajudando com informação e dados. O intuído e deixar uma fonte de pesquisa histórica verdadeira contada pelos atores que fizeram parte dessa história.

Adeval Marques





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