Canindé de São Francisco/SE –
Uma das maiores canoas de tolda que já existiu no Baixo rio São Francisco ainda
pode ser vista apesar do estado físico lamentável que ela se encontra. O
trabalho que resgatará a grande canoa chamada de Itabajara exigirá muito sacrifício,
empreendimento e dedicação por parte dos que farão parte de tal empreitada.
Das mais de
sessenta naus que navegavam pelo rio só existem hoje três delas: a Piranhas que
foi reconstruída na cidade de Propriá através do projeto da prefeitura da
cidade de Piranhas/AL; a Luzitânia, que é fruto do pensamento da ONG-Canoa de
tolda na cidade de Piaçabuçu e até já recebeu prêmio em Brasília e agora
aparece a canoa Itabajara que poderá voltar a navegar pelo rio São Francisco.
A Canoa de
tolda Itabajara era de propriedade de Francisco Fernandes, conhecido por Chico
de Guilherme, onde ela passou três anos para ser construída pelo mestre
Cornélio Rodrigues lá no povoado Jacaré/SE e enfim entrou nas águas do rio onde fez a sua primeira viagem no Baixo
rio São Francisco ainda sem a tolda e, coincidentemente, nessa sua primeira
viagem uma grande tempestade fez-se cair por toda a noite, deixando o seu
proprietário exposto ao frio e chuva sem um abrigo para ampara-lo. Francisco
Fernandes fez a canoa com muita dificuldade financeira e isso o ajudou a ter
mais amizade ao seu patrimônio.
Depois de
navegar por mais de vinte e cinco anos, levando todo tipo de carga para as
cidades do Alto Sertão, a Itabajara foi vendida no mês de fevereiro de 1989 ao
senhor José Luiz residente na cidade de Neópolis/SE que de imediato tratou logo
de mudar o seu projeto inicial ou configuração de barco rustico, ou seja: ao
invés dos belos traquetes – panos – que a impulsionavam com beleza e maestria,
ela ganhou um motor enorme com três marchas e um barulho ensurdecedor, perdendo
assim um dos aspectos mais bonitos que elas possuíam justamente na maneira
silenciosa de como navegavam, pois os únicos sons que se podiam ouvir eram
murmurar do vento uivando nos panos e o passar dos traques de um lado para o
outro; as belas tábuas de bolina foram arrancadas deixando-a nua e sem adorno
externo; o , é que eram percebidos como som; a tolda de quatro metros que abrigava os
passageiros e era a sua definição enquanto canoa, e dai o nome canoa de tolda,
foi arrancada deixando-a sem uma referência do projeto original, ficou pelada e
sem a tez tão bela; os bancos de proa e poupa foram igualmente arrancados com
dureza, deixando cicatrizes vivas até hoje e um dano irreparável que conta
muito para a segurança da nau; o seu leme, obra prima do mestre Cornélio
Rodrigues, feito a tão gosto, foi substituído por um de ferro tosco, sem cor,
frio, sem luz, sem vida e forjado ao fogo e a martelo; os moitões não rugiam
mais, o vento não mais a impulsionavam, as bolinas jogadas em terra, as
escoltas viraram cordas de amarrar nada, a tão bela tolda desmanchada e suas
tábuas usadas sabe-se lá para que. Da grande não só ficou o cavilhame que
funcionam como costelas de um ser vertebrado; às tábuas do costado por serem
fortes não se renderam; parafusos, tábua de casco, cordão, beral, proa e poupa
continuaram fortes e hoje são os responsáveis por deixa-la ainda em pé. A canoa
de tolda Itabajara quase foi destruída.
Com vinte
metros de cumprimento, doze de verga e mastro, três e quarenta e quatro de
largura, profundidade de um metro e quarenta, tolda de cinco metros, poupa de
quatro metros e quarenta, a canoa Itabajara não é qualquer uma e para suportar
toda essa estrutura foi preciso um trabalho de verdadeiro mestre, boa madeira e
um projeto bem calculado. A exigência do proprietário Francisco Fernandes em
orientação ao velho mestre Cornélio Rodrigues era para que a canoa fosse feita
para carga e durar no tempo de manutenção e reparos. Exigência, capacidade, empenho
e dedicação foram os aspectos colocados na construção da canoa e é o que a faz
ficar de pé até hoje.
Lá, na
cidade de Neópolis/SE, ela ficou por vinte e dois anos servindo ou contribuindo
de alguma forma para àquele povo ribeirinho e suas necessidades. Foi transporte
de gente, animais, carga de todos os tipos, transporte de lazer e passeios; foi
fotografada, filmada, admirada por poucos e ignorada por muitos até ficar no
estado em que estava: jogada em um porto com lama, mato aquático e paus, esquecida e exposta a própria ação do
tempo e a própria sorte. Jogada para morrer da pior maneira que pode acontecer
com uma canoa, justamente sem mais navegar. Para um canoeiro é preferível saber
que uma canoa está no fundo do rio do que vê-la findar-se em terra sob o sol, a
chuva e o vento. A Itabajara estava numa beirada a meia água, a meio sol,
agonizando da sua maneira.
Exatos vinte
e dois anos depois um dos filhos mais jovem de Francisco Fernandes, Everaldo
Fernandes, readquiriu-a e está tentando,
a muito custo, fazer o trabalho de recuperação, resgatando a sua configuração
original e colocando-a para navegar novamente nas águas do rio São Francisco. A
ambição de Everaldo Fernandes tem explicação: todos os filhos de Francisco
Fernandes tinham na canoa de tolda a sua principal fonte de sustentação. Chico
era o tipo de homem que trabalhava incansavelmente na sua canoa. Para você ter
uma ideia da vida dura de Chico ela pode ser contada da seguinte forma: nos
dias de domingo, assim que o vento caia, os grandes panos eram içados e a canoa
lançada na água rumo a cidade de Piranhas onde deveriam estar no máximo na
terça por motivo da feira naquela cidade que acontecia aos dias de quarta-feiras.
Como carga ela levava os mantimentos de arroz, milho, sacos contendo litros de
cachaça, outras mercadorias e passageiros. A viagem, se o vento era bom,
levavam de um dia a um e meio e se o vento não ajudasse ou fosse nas épocas de
invernos poderia levar de dois a semanas. Assim que a feira acabava, já por
volta das 14 e 15:00h, a canoa zarpava do porto da cidade sertaneja de Piranhas
e vinha dando porto em outras buscando mercadorias para levar até a cidade de
Propriá ou para onde se pretendia o destino do contratante. Na vinda ela vinha
muito carregada e era muito comum aos que não tinham costume de viajar nas
canos achar que ela iria capotar devido ao tipo de rumo chamado de bordo que
ela tomava. Era comum encontrar a canos Itabajara em bordos intermináveis noite
a dentro sempre indo de um lado a outro, ora em Sergipe e ora em Alagoas, indo
e voltando até que o dia amanhecia onde podia-se ver uma pequena fumaça vinda
de um pequeno fogão a assar um naco de carne ou a ferver um bule de café e
sempre um velho canoeiro a zingrar ou a segurar a cana de leme com a tez
mirando rumo a baixo. Ela trazia do Sertão o carvão, cal, estacas de madeira,
pedras da cidade de Belo Monte, pequenos animais tipo galinha, ovelhas, cabras,
pássaros do tipo papagaios, araras, gaiolas e outras espécies quando abundantes
e não era proibida o comércio, latas de mel, passageiros e outras mercadorias. Chegava
a cidade Propriá em um bordo lento, cansada, mirando o belo porto da cidade que
as vezes já estava lotado delas por volta das 16:00hs e até mesmo no cair da
noite. Chico de Guilherme fez essa jornada por mais de trinta anos pois sua
primeira canoa foi a Paraguaçu para depois construir a Itabajara.
É certo que a recuperação da canoa Itabajara
não será fácil devido a sua robustez e outras características peculiares a ela.
Everaldo certamente, se quiser manter a sua configuração ou projeto de
construção original da grande nau, haverá de ter subsídios financeiros, muita
paciência, fé, determinação e ânimo. Não será fácil.
Talvez agora
algumas autoridades desejem olhar o resgate da canoa de tolda Itabajara como
uma oportunidade de tentar fazer algo pelo passado, história, cultura e humano
do baixo São Francisco e numa parceria propor a Everaldo Fernandes, através de
projeto, ajuda-lo a reconstruir a bela nau que pode servir de elo entre o
passado e presente inserindo a sua história na grade de estudos do município,
ou fazendo um museu fluvial navegante no baixo São Francisco. O interessante é
que a atenção seja dada pois sabemos da grande contribuição que essas canoas
deram para a formação do desenvolvimento das regiões de todo o Baixo São
Francisco desde a cidade Piranhas, passando por Porto de Folha, Gararu,
Itraipu, Pão de Açúcar, Poço Redondo, Penedo, Neópolis, Porto Real do Colégio e
Propriá. Elas foram, em um tempo remoto, o único transporte de carga,
passageiros e correspondência entre essas cidades e povos. Uma grande
contribuição e a sociologia e antropologia, história e cultura registram isso
com habilidade.
Na bandeira
da cidade de Propriá contem a imagem de uma canoa de tolda e para os de hoje a
gravura é apenas um barquinho com dois panos e uma casinha como bem disse minha
sobrinha de dez anos que só agora começa a saber o que elas foram e o que
representaram para num passado não tão distante. Um barquinho?!
A
configuração da Itabajara era algo monstruoso pois ela foi uma das maiores do
rio e certamente refaze-la não será fácil. Contudo, a noticia da que Everaldo
Fernandes readquiriu a canoa Itabajara de volta, chegou aos ouvidos de dois
grandes velhos mestres de carpintaria naval ainda vivos: um deles é o próprio
que a fez, Cornélio Rodrigues, que ainda encontra-se lucido e gozando de boa
saúde e o outro é Pedro Amorim, também grande mestre da cidade de Propriá onde
o encontro se dará, provavelmente, no mês de janeiro/2012 e assim ver a bela
nau que, mesmo no estado precário em que se encontra, avariada e necessitando
de reparos, ainda continua bela de ser vista e esse sentimento só tem àqueles
que sabem da sua importância para o desenvolvimento da região, os que
simplesmente lhe acham bela como barco rustico só encontrado no Baixo São
Francisco, os que tiveram o prazer de navegar em qualquer uma delas, pois todas
foram lindas demais como verdadeiras obras de arte; os que viajaram e dormiram
em seu camarote dentro da tolda, nos estrados, por sob o tordão ou na poupa da
canoa a sentir o frescor do rio, a brisa da manhã que fazia o sono ficar bem
mais gostoso, àqueles que almoçaram da inesquecível feijoada tão apreciada das
canoas de tolda; do pegar de pareia rio acima chacotando uns com outros, dos
que fizeram delas a própria existência e choraram quando se desfez delas. Esses
e mais outros são os que tem o sentimento mais nobre pelas canos de tolda e que
ainda lutam por divulgar alguma coisa delas mesmo que sem ser dado o valor
merecido, entretanto, levando uma mensagem de esperança aos homens que dirigem
essa nossa pátria amada.
A canoa de
tolda Itabajara poderia estar embaixo das águas do nosso rio São Francisco
assim como a canoa Topázio que naufragou, por excesso de peso, acima do buraco
de Maria Pereira no morro da Tabanga quase de fronte a cidade de Traipu e que
Everaldo Fernandes ainda trabalho por muitos dias dedicando-se a tentar retirá-la
de fundo do rio e quase conseguiu se fosse ajudado. Ainda bem que ela pode ser reconstruída,
poderá voltar a navegar e voltar a ser admirada, objeto de beleza e admiração
por todas as pessoas. Seu valor histórico e cultural pode também ser observado
e as devidas homenagens devem ser feitas sob a ótica da contribuição que elas
deram ao nosso povo.
Desse ponto
em diante teremos a chance de estudar a maneira de como elas eram construídas,
que matemática era aplicada para se achar o tamanho exato de um pano de
traquete; das bulinas, leme, largura, cumprimento e suporte de peso – tara -,
informações perdidas que ainda podem ser recuperadas a tempo antes que seja
tarde demais e os atores interessados não estejam mais presentes nesta cena
atual e iguais às canoas de tolda que passaram sem registro histórico e valor
merecido a elas/eles.
Agradecimentos:
Parabéns
Everaldo Fernandes por sua luta e dedicação no resgate da Itabajara, ao
escritor Etevaldo Amorim que publicou um livro a respeito do assunto e sobre o
mestre Minervino Amorim – pai de Pedro Amorim -, aos mestres Cornélio Rodrigues
pela grande contribuição, a Pedro Amorim pela sua humildade de mestre e ser
humano, Inácio Loiola pela reconstrução da canoa de tolda Piranhas, a ONG Canoa
de Tolda pelo resgate da Luzitânia, a Alcino Alves Costa que está escrevendo o
livro Canoas: O Caminho Pelas Águas, a Djalma Santos que está contribuindo com
achados e informação sobre às canoas de tolda, ao jornalista Luiz Eduardo Costa
que demonstrou interesse em conhecer alguns personagens ainda vivos e quem sabe
poder contribuir de alguma maneira e por fim a todos que, de forma direta ou
indireta, estão ajudando com informação e dados. O intuído e deixar uma fonte
de pesquisa histórica verdadeira contada pelos atores que fizeram parte dessa
história.
Adeval
Marques
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